Executado deve provar se propriedade rural é explorada em regime familiar

Executado deve provar se propriedade rural é explorada em regime familiar

Por Ana Carolina Martins Monteiro Pinto

A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, decidiu que o ônus de comprovar que as terras da pequena propriedade rural são, efetivamente, exploradas em regime familiar recai sobre o dono do imóvel. O colegiado julgou o Recurso Especial nº 1843846/MG e decidiu ainda que o reconhecimento da impenhorabilidade não fica impedido pelo fato de o devedor ser proprietário de mais de um imóvel, contanto que os terrenos sejam contínuos e a soma das áreas não ultrapasse quatro módulos fiscais [1].

O que ensejou o recurso ao STJ foi a rejeição de impugnação à penhora de dado imóvel rural, proferida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O juízo ponderou a falta de prova de que a propriedade rural era trabalhada pela família ou servia de moradia para a mesma. Considerou também inviável o acolhimento da tese de impenhorabilidade associada à propriedade que os devedores têm sobre outros imóveis. O recurso dos proprietários foi, então, improvido pelo TJ-MG, sob o argumento de que eles não comprovaram os requisitos da impenhorabilidade. Após a análise do caso pelo STJ, concluiu-se que o tribunal não teria verificado se os demais terrenos dos devedores eram contínuos e/ou trabalhados pelas famílias. Por isso, o processo foi devolvido para novo julgamento.

A Constituição Federal, no inciso XXVI do artigo 5º, estipula a impenhorabilidade de pequena propriedade rural explorada pela família. Esta previsão está calcada na garantia da subsistência.

“Artigo 5º — Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXVI – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento”.

Na mesma linha de raciocínio da Constituição, por motivos óbvios, o atual Código de Processo Civil, em seu artigo 833, inciso VIII, condiciona o reconhecimento da impenhorabilidade da pequena propriedade rural à sua exploração familiar.

“Artigo 833  São impenhoráveis:
VIII – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família”.

A relatora do caso, a ministra Nancy Andrighi, quanto às normas supracitadas (mais especificamente, no que diz respeito aos trechos “assim definida em lei”), faz, porém, a ressalva de que não há lei que defina o que seria uma pequena propriedade rural para fins de impenhorabilidade, evidenciando uma lacuna legislativa. Por esse motivo, a jurisprudência tem se utilizado do conceito previsto na Lei 8.629/1993, que define pequeno imóvel rural como área de até quatro módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcelamento.

Assim, entende-se que na hipótese em que os terrenos forem contínuos e a soma de suas áreas não ultrapassar quatro módulos fiscais, a pequena propriedade rural será impenhorável. Se, todavia, o somatório resultar em numerário superior, a proteção se limitará a quatro módulos fiscais (como se decidiu no julgamento do REsp 819.322). Outra situação que poderia ocorrer é o devedor ser titular de mais de um imóvel rural, não contínuos, todos explorados pela família e de até quatro módulos fiscais. Esse caso implicaria a evidente coalisão de direitos fundamentais, o que merece maior reflexão. A solução mais justa e adequada, de acordo com a ministra Nancy Andrighi, de modo a viabilizar a continuidade do trabalho pelo pequeno produtor rural e, simultaneamente, não embaraçar a efetividade da tutela jurisdicional, seria proteger uma das propriedades e autorizar que as demais servissem para satisfazer o crédito exequendo.

A questão polêmica desse julgamento, no entanto, não era relativamente a responsabilidade do devedor de comprovar que a propriedade penhorada não ultrapassa quatro módulos fiscais (questão esta que já se fazia clara), mas com relação à controvérsia sobre se cabe ao exequente ou ao executado demonstrar que a pequena propriedade é trabalhada pela família.

O acórdão do REsp 1.408.152/PR, o primeiro a tratar sobre o tema após a entrada em vigor do CPC/2015, comprova que a 4ª Turma do STJ vinha decidindo no sentido de que “deve ser ônus do executado — agricultor — apenas a comprovação de que o seu imóvel se enquadra nas dimensões da pequena propriedade rural. No entanto, no tocante à exigência da prova de que a referida propriedade é trabalhada pela família, a melhor exegese parece ser a de conferir uma presunção de que esta, enquadrando-se como diminuta, nos termos da lei, será explorada pelo ente familiar, sendo decorrência natural do que normalmente se espera que aconteça no mundo real, inclusive, das regras de experiência (NCPC, artigo 375)”.

Ao se posicionar dessa maneira, reconhecendo a existência de uma presunção juris tantum de que a propriedade diminuta é trabalhada pela família, atribuindo ao credor o encargo de afastar essa presunção, a 4ª Turma igualou a impenhorabilidade da pequena propriedade rural à impenhorabilidade do bem de família. Contudo, essa analogia, como entende a relatora do caso em análise, não é viável. A jurisprudência do STJ se orienta no sentido de que quando o devedor argumenta a impenhorabilidade do bem de família, somente cabe a ela provar que o imóvel serve de residência para a sua família, não sendo necessário comprovar que aquele é o único imóvel que possui. Caso o credor pretenda a manutenção da constrição, será atribuído a este o ônus de demonstrar que o executado é proprietário de outros bens imóveis.

Apesar de ambas as regras, da impenhorabilidade do bem de família e da impenhorabilidade da pequena propriedade rural, serem consequência do princípio da dignidade da pessoa humana, elas tutelam bem jurídicos diversos. Ao passo que a primeira cuida da proteção do direito à moradia, a segunda busca garantir um patrimônio mínimo necessário à sobrevivência da família. Além disso, diferentemente do que ocorre quando da impenhorabilidade da pequena propriedade rural, como bem explicitado anteriormente, para que haja o reconhecimento da impenhorabilidade do bem de família não se faz necessária a demonstração de que o imóvel constrito é o único destinado à residência familiar, tendo em vista que este não é um requisito exigido por lei.

A Lei 7.513/86, responsável pela inclusão do inciso X no artigo 649 do CPC/73, exigia expressamente que o imóvel rural constrito fosse o único bem do devedor. Esse requisito, porém, foi retirado do antigo diploma processual pelas alterações da Lei 11.382/2006. As legislações constitucional e infraconstitucional que se seguiram também não impõem a necessidade do bem penhorado ser o único imóvel rural de propriedade do executado. Dessa forma, conclui-se que ser proprietário de um único imóvel rural não é pressuposto para o reconhecimento da impenhorabilidade. “A imposição dessa condição, enquanto não prevista em lei, é incompatível com o viés protetivo que norteia o artigo 5º, XXVI, da Constituição Federal e o artigo 833, VIII, do CPC/2015”, segundo a relatora.

A 3ª Turma do STJ, por sua vez, quando instada a manifestar-se acerca da matéria, exteriorizou compreensão contrária à adotada pela 4ª Turma, como verifica-se pelo seguinte trecho, de autoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, do REsp 1.716.425/RS:

“Com efeito, embora seja inegável a relevância social da proteção estatal ao pequeno produtor rural, a garantia da impenhorabilidade rural guarda uma particularidade que, a meu juízo, desaconselha a aplicação de entendimento análogo àquele firmado para o caso da impenhorabilidade do imóvel residencial qualificado como bem de família.
Refiro-me ao requisito específico da exploração da terra diretamente pela entidade familiar (nos termos da Constituição: terra ‘trabalhada pela família’).
Esse requisito, a meu juízo, não poderia presumido com base nas regras de experiência, como entendeu a egrégia 4ª Turma, pois a experiência, ao contrário, infirma essa presunção, uma vez que, no universo das propriedades rurais de pequena dimensão, uma quantidade expressiva é utilizada para fins de lazer (sítios de recreio) ou para fins de exploração empresarial/industrial, por exemplo.
Essa particularidade da pequena propriedade rural, a meu juízo, afasta a possibilidade de analogia com a distribuição do ônus da prova na hipótese de impenhorabilidade do bem de família. (fls. 17-19)”.

A 3ª Turma se orienta no sentido de que, para o reconhecimento da impenhorabilidade, o devedor tem o ônus de comprovar que, além de pequena, a propriedade destina-se à exploração em regime de economia familiar, desde quando o CPC/73 ainda estava vigente (à exemplo do REsp 492.934). Em regra, a parte que alega, isto é, o autor tem o ônus de demonstrar a veracidade dos fatos (ônus de provar o fato constitutivo de seu direito), enquanto ao réu incumbe demonstrar o fato extintivo, impeditivo ou modificativo desse direito (artigo 373 do CPC/2015). Assim, uma vez que a impenhorabilidade é fato constitutivo do direito do executado, este fica obrigado a comprovar os requisitos necessários ao seu reconhecimento.

Em suma, o ônus de provar que a propriedade rural é trabalhada pela família é do executado. Corroborando com essa tese, sob a ótica da aptidão para produzir essa prova, é nítida a maior facilidade que o devedor (em detrimento do credor) tem de demonstrar a veracidade do fato alegado. Não obstante, vale a ressalva de que, tendo em vista as peculiaridades possivelmente observadas no caso concreto, o juiz poderá determinar a redistribuição do ônus da prova (§1º, do artigo 373, do CPC/2015).

Para concluir, atentando-se à manutenção da subsistência do executado e de sua família (sendo, por isso, necessária a impenhorabilidade de pequena propriedade rural voltada à exploração familiar), a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, acertadamente, que o ônus da prova (tanto no tocante ao enquadramento do imóvel ao conceito de pequena propriedade rural quanto no que concerne ao fato de que esta é explorada em regime de economia familiar) é do executado, proprietário do imóvel rural que se pretende penhorar.

[1] “Módulo fiscal é uma unidade de medida, em hectares, cujo valor é fixado pelo INCRA para cada município levando-se em conta: (a) o tipo de exploração predominante no município (hortifrutigranjeira, cultura permanente, cultura temporária, pecuária ou florestal); (b) a renda obtida no tipo de exploração predominante; (c) outras explorações existentes no município que, embora não predominantes, sejam expressivas em função da renda ou da área utilizada; (d) o conceito de ‘propriedade familiar’. A dimensão de um módulo fiscal varia de acordo com o município onde está localizada a propriedade. O valor do módulo fiscal no Brasil varia de 5 a 110 hectares”. Informação retirada do site oficial da Embrapa: https://www.embrapa.br/codigo-florestal/area-de-reserva-legal-arl/modulo-fiscal#:~:text=M%C3%B3dulo%20fiscal%20%C3%A9%20uma%20unidade,de%20explora%C3%A7%C3%A3o%20predominante%3B%20(c). Acesso em 13/4/2021, às 16:38.

 é estagiária no Diamantino Advogados Associados.

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