A nova Lei de Recuperação Judicial e Falências e a insolvência transnacional
Por Ana Carolina Martins Monteiro Pinto
Pressionados pela crise econômica que se intensificou, no Brasil, com a pandemia da Covid-19, o Congresso Nacional decretou e o presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, sancionou a nova Lei de Recuperação Judicial e Falências (Lei nº 14.112/2020), que entrou em vigor em 23 de janeiro deste ano. Com o objetivo de dar mais fôlego às empresas em recuperação e com dificuldades financeiras, a recente lei traz diversas inovações à Lei nº 11.101/2005. Apesar dos especialistas divergirem quanto à real necessidade de atualização da antiga Lei de Recuperações e Falências, a grande maioria da comunidade jurídica reconhecia o atraso do Brasil na regulamentação do instituto da insolvência transnacional.
As normas de insolvência transnacional são importantes nas hipóteses em que os ativos do devedor estiverem localizados em diversas jurisdições ou quando alguns dos credores estiverem situados em jurisdição diversa daquela em que o processo principal está sendo julgado, dentre outras. Atualmente, face a um mundo globalizado e ao processo natural de internacionalização das empresas, é importante que haja um sistema de cooperação jurídica entre os estados, de forma a garantir um processo eficiente e igualitário. O futuro da sociedade está, certamente, marcado por um grande número de processos em que concorrem múltiplas jurisdições. É uma internacionalização do Poder Judiciário.
Em 1997, a United Nations Commission on International Trade Law (Uncitral) aprovou a Lei Modelo sobre Insolvência Transnacional (Cross-Border Insolvency Law), de modo a implementar mecanismos de cooperação internacional entre os tribunais e demais autoridades competentes de cada estado. O propósito final era promover uma maior segurança jurídica para as relações empresariais em âmbito internacional. Porém, é importante dizer, a lei modelo nunca teve efeito vinculante para com os estados signatários (regime de soft law), o que significa que os países possuem liberdade para incorporar ou não a lei modelo em seus respectivos sistemas.
A insolvência transnacional foi incorporada no ordenamento jurídico brasileiro somente a partir da Lei nº 14.112/2020 (no extenso Capítulo VI-A), mas antes disto já se observavam vestígios do instituto. Em 2015, com o novo Código de Processo Civil, instituíram-se regras de cooperação internacional mais efetivas, fato que inaugurou espaço para que a insolvência transnacional se apresentasse de forma mais aparente no cenário nacional. Além disso, a jurisprudência, ainda tímida, demonstra que as cortes nacionais vinham permitindo que determinadas sociedades estrangeiras integrassem no polo ativo de pedidos de recuperação judicial. Como exemplo temos o processo de recuperação judicial do Grupo Oi (TJ-RJ, 7ª Vara Empresarial, Processo nº 0203711-65.2016.8.19.0001), no qual houve litisconsórcio ativo de sete empresas do grupo econômico, incluindo duas sociedades estrangeiras presentes na Holanda. Fora isso, o processo brasileiro foi reconhecido na Inglaterra, nos Estados Unidos e em Portugal.
A cooperação jurídica internacional compreende um conjunto de medidas e mecanismos pelos quais os órgãos competentes de cada estado prestarão auxílio recíproco para realizar atos processuais e pré-processuais em seu território. Não se trata de pedido de execução de decisão estrangeira, o juiz local deverá analisar o caso em questão e, a partir dos elementos concretos, decidir se é o caso de reconhecer o procedimento ou não.
O Brasil adotou o sistema misto de insolvência transnacional: há um procedimento principal na sede do devedor e procedimentos secundários nos países em que existam bens a serem atingidos. Isso definido, o Capítulo VI-A, incluído pela Lei nº 14.112/2020, inicia estabelecendo os objetivos da insolvência transnacional, bem como os parâmetros para a sua interpretação e aplicação. São eles: 1) cooperação entre juízes e outras autoridades competentes do Brasil e de outros países em casos de insolvência transnacional; 2) aumento de segurança jurídica para a atividade econômica e para o investimento; 3) administração justa e eficiente de processos de insolvência transnacional de modo a proteger os interesses de todos os credores e dos demais interessados, inclusive do devedor; 4) proteção e maximização do valor dos ativos do devedor; 5) promoção da recuperação de empresas em crise econômico-financeira, com a proteção de investimentos e preservação de empregos; e 6) promoção da liquidação dos ativos da empresa em crise econômico-financeira, com a preservação e a otimização da utilização produtiva dos bens, dos ativos e dos recursos produtivos da empresa, inclusive os intangíveis.
Em sintonia com as alterações da Lei de Recuperação Judicial e Falências, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Resolução nº 394/2021, que, baseada no guia de cooperação e comunicação direta entre juízos de insolvência editado pelo Judicial Insolvency Network (JIN), dispõe acerca das questões relacionadas a processos de insolvência transnacional que envolvam o Brasil. Antes de darmos continuidade, é necessário se fazer claro que, em respeito à soberania e autoridade dos juízos envolvidos, a resolução sublinha a importância da manutenção da preservação das respectivas jurisdições dos juízos, que deverão conduzir as audiências conforme as regras processuais aplicáveis.
Em especial atenção aos artigos 167-P e 167-S da LRF, a resolução determina que a comunicação direta entre os juízos brasileiro e estrangeiro(s) deve ser, necessariamente, ordenada por normas estabelecidas em protocolos de insolvência a serem firmados pelos juízos envolvidos, respeitadas as diretrizes previstas pelo JIN (anexas à resolução). Para além da comunicação direta entre os juízos, os protocolos deverão tratar da coordenação de determinados atos, da realização de audiências conjuntas, e da comunicação com os credores e demais partes interessadas nos processos concorrentes — nota-se que o instituto apenas regula questões procedimentais, não podendo intervir em questões de cunho material. Conforme necessário, os protocolos de insolvência podem ser alterados a fim de reverberar eventuais mudanças nos processos concorrentes, sendo necessária a notificação do juízo estrangeiro. Na medida do possível, com fundamento nos princípios de economia e celeridade processual, os protocolos devem evitar procedimentos desnecessários e custosos.
Afora a Resolução, o CNJ aprovou também o Ato Normativo nº 0001835-18.2021.2.00.0000, que prevê as orientações para a criação do Cadastro de Administradores Judiciais. A escolha dos administradores deverá ser feita pelos Tribunais de Justiça dos estados e do Distrito Federal. Designado pelo juiz responsável pelo processo de recuperação, o administrador judicial é uma espécie de auxiliar responsável por intermediar as fases do processo judicial, podendo ser pessoa física ou jurídica. O Conselho Nacional de Justiça busca criar um banco de dados com o cadastro uniforme dos profissionais auxiliares de todo o país.
Atendendo às diretrizes da nova legislação, em decisão inédita, que representa marco histórico quanto ao tema no Brasil, o juízo da 3ª Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (Processo nº 0129945-03.2021.8.19.0001) reconheceu a existência de processo de insolvência estrangeiro com efeitos sobre os bens do devedor em território nacional. Nos termos do artigo 167-H da Lei de Recuperação Judicial e Falências, a representante da empresa estrangeira Prosafe SE, que atua na área de exploração de embarcações marítimas, ajuizou, no Brasil, local onde detém embarcações, pedido de reconhecimento de processo que tramitava perante o Tribunal Superior de Singapura como sendo o principal e a concessão de tutela provisória (artigo 167-L da LRF) para que, nos termos do artigo 167-M, fosse vedada a adoção de quaisquer medidas constritivas sobre os bens de sua propriedade.
Nos autos do processo estrangeiro havia sido concedido pedido de moratorium protection, semelhante ao stay period previsto na legislação pátria, restando vedada a adoção de determinadas medidas por credores contra o devedor e seu patrimônio, por um período de tempo fixado pela corte. Em sede de liminar, o juízo fluminense reconheceu como principal o processo estrangeiro em curso em Singapura e entendeu estarem presentes todos os requisitos que autorizam a concessão de tutela de urgência, determinando a suspensão de quaisquer processos de execução em curso em face do Grupo Prosafe.
Um ponto de extrema relevância e que ganhou destaque nas discussões após a introdução do instituto da insolvência transnacional no ordenamento brasileiro é a soberania nacional. Poderia esta ser afetada quando do reconhecimento de um processo estrangeiro em território nacional? A Lei Modelo da Uncitral, como já dito anteriormente, defende o soft law, porém, na prática, é possível enfrentar situações que ameaçam a soberania dos Estados. Para uma melhor compreensão, imaginemos a seguinte hipótese. É decretada a falência de uma empresa estrangeira que tem bens no Brasil. Ocorre que há um crédito extraconcursal brasileiro. De acordo com a legislação brasileira, este crédito (extraconcursal) não seria afetado pelos efeitos da falência. Assim, poderia a autoridade competente no Brasil argumentar, por exemplo, que os bens da empresa estrangeira que se encontram no território brasileiro estão sob jurisdição brasileira e que, portanto, devem ser destinados, diretamente, à satisfação do crédito extraconcursal.
Para finalizar, vale mencionar que é certo que uma das principais características da pós-modernidade globalizada é o aumento da complexidade das relações societárias. Assim sendo, espera-se que um dos reflexos da incorporação da insolvência transnacional ao ordenamento brasileiro a serem observados seja o aumento de investimentos estrangeiros no país. Isso pois, a partir deste momento, há uma maior segurança e previsibilidade às empresas que atuam em múltiplas jurisdições.
Ana Carolina Martins Monteiro Pinto é estagiária no Diamantino Advogados Associados.