Decisão do STF sobre legítima defesa da honra mostra evolução do Judiciário
Por Ana Carolina Martins Monteiro Pinto
O dia 12 de março deste ano certamente entrou para a história do Brasil. Em sessão virtual, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a tese de legítima defesa da honra é inconstitucional. A corte referendou a liminar concedida pelo ministro Dias Toffoli (relator), em fevereiro, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779. A tese vinha sendo utilizada pelas defesas dos acusados de feminicídio ou agressões contra mulheres, tendo por objetivo imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes e/ou lesões.
A ADPF 779, ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), que contava com pedido de medida cautelar, o qual foi parcialmente atendido pela decisão do STF, tinha por objetivo conseguir que fosse dada interpretação conforme à Constituição aos artigos 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal (CP), e aos artigos 65 e 483, III, §2º, do Código de Processo Penal (CPP), de modo que fosse afastada a tese jurídica da legítima defesa da honra e fixado o entendimento sobre a soberania dos veredictos.
O primeiro argumento sustentado pelo autor da ADPF foi quanto à controvérsia constitucional verificada. Isso porque decisões do Tribunal de Justiça e veredictos do Tribunal do Júri estariam ora validando, ora anulando a tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio. Além disso, foram apontadas também divergências de entendimento sobre o tema entre o STF e o Superior Tribunal de Justiça.
Com relação ao mérito, o PDT declarou violação do artigo 1º, caput e inciso III, do artigo 3º, inciso IV, e do artigo 5º, caput e inciso LIV, da Constituição Federal. A alegação é de que o conteúdo da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri deveria estar de acordo com os direitos fundamentais à vida, à dignidade da pessoa humana e à igualdade de gênero. Em outras palavras, a garantia constitucional de soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, que, por vezes, acaba legitimando julgamentos em desacordo com os elementos fático-probatórios elaborados à luz do devido processo legal, não poderia descumprir princípios constitucionais com aqueles mencionados anteriormente, de modo em que estaria discriminando as mulheres vítimas de agressão e/ou feminicídio.
A principal pretensão da ADPF seria, então, discutir o conteúdo jurídico da legítima defesa, que seria causa excludente de ilicitude, de maneira a afastar de sua esfera a proteção à honra do acusado. Em julgamento, o STF entendeu a tese de legítima defesa contra a honra, utilizada em casos de feminicídio, sob a prerrogativa de que a própria vítima teria ensejado a violência contra ela, como um argumento anacrônico que estaria lesando a humanidade.
Caso emblemático, que veio à tona com a recente decisão do STF, foi o assassinato da socialite mineira Ângela Diniz, em 30/12/1976, morta a tiros por seu marido, o empresário Raul “Doca” Fernandes do Amaral Street (ou, simplesmente, Doca Street). A tese de defesa do réu era de que ele teria agido em legítima defesa da honra e “matado por amor”.
A pandemia da Covid-19 e suas consequentes restrições contribuíram enormemente para o aumento dos casos de feminicídio, o que chamou a atenção do Judiciário brasileiro. A Justiça passou a refletir sobre quais medidas poderiam ser tomadas a fim de colaborar com a luta contra este tipo de crime. O fato de o Brasil ter registrado 648 feminicídios no primeiro semestre de 2020, 1,9% a mais que no mesmo período do ano de 2019, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), com certeza foi uma das motivações de o Supremo para decidir contra a tese da legítima defesa.
Diferentemente do que decidiu liminarmente em fevereiro de 2021, o ministro Dias Toffoli, neste momento recente, votou, acolhendo a proposta do ministro Gilmar Mendes, no sentido de que defesa, acusação, autoridade policial e/ou juízo não poderiam se utilizar, direta ou indiretamente, do argumento da legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que aludisse à tese) nas fases pré-processual e processual, bem como durante julgamento perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.
Acompanhando o relator, os ministros Luiz Fux, Edson Fachin e Roberto Barroso votaram pela concessão da liminar solicitada pelo PDT em maior extensão, para também fornecer interpretação conforme a Constituição ao artigo 483, III, §2º, do CPP, de modo a determinar que o quesito genérico de absolvição previsto no dispositivo não autoriza a utilização da tese de legítima defesa da honra, e permitindo, então, ao Tribunal de Justiça anular a absolvição evidentemente contrária à prova dos autos. Para Fachin, a decisão do júri, ainda que fundada em eventual clemência, deve apresentar uma racionalidade mínima, tal como ao Tribunal de Justiça deve ser assegurado um controle mínimo desta racionalidade, evitando-se, assim, que a absolvição do réu acusado de feminicídio ocorra com base na tese que foi considerada inconstitucional.
Ainda em seu voto, Toffoli argumentou que a traição, que seria pretexto de muitos casos de feminicídio registrados no Brasil, teria seu desvalor inserido “no âmbito ético e moral, não havendo que se falar em um direito subjetivo de contra ela agir com violência”. Acrescentou, ainda, que foi baseado nesta ideia e “para evitar que a autoridade judiciária absolvesse o agente que agiu movido por ciúmes ou outras paixões e emoções que o legislador ordinário inseriu no atual Código Penal a regra do artigo 28”, de acordo com a qual nem a emoção e nem a paixão seriam hipóteses excludentes de imputabilidade penal.
“Aquele que pratica feminicídio ou usa de violência com a justificativa de reprimir um adultério não está a se defender, mas a atacar uma mulher de forma desproporcional, covarde e criminosa”, entendeu o ministro Dias Toffoli.
O ministro Alexandre de Moraes, por sua vez, declarou em seu voto que “não pode o Estado permanecer omisso perante essa naturalização da violência contra a mulher, sob pena de ofensa ao princípio da vedação da proteção insuficiente e do descumprimento ao compromisso adotado pelo Brasil de coibir a violência no âmbito das relações familiares (artigo 226, §8º, da CF)”.
Uma importante razão que a ministra Cármen Lúcia trouxe em seu parecer foi a de que “a tese jurídica de legítima defesa da honra não tem amparo legal”. Teria sido ela construída por discursos em julgamentos pelos tribunais e firmada “como forma de adequar práticas de violência e morte à tolerância vivida na sociedade aos assassinatos praticados por homens contra mulheres tidas por adúlteras ou com comportamento que fugisse ou dotasse do desejado pelo matador”.
No modo de pensar do ministro Gilmar Mendes, como expressou em seu voto, a tese da legítima defesa da honra seria inadmissível, “visto que pautada por ranços machistas e patriarcais, que fomentam um ciclo de violência de gênero na sociedade”. E é respaldado nesse argumento que é possível apresentar a seguinte conclusão abaixo.
A decisão do STF demonstra uma evolução do Poder Judiciário, e dos próprios cidadãos, no modo de enxergar o papel da mulher na sociedade brasileira. A tese de legítima defesa da honra, utilizada em casos de feminicídio, seria uma forma de corroborar com a ideia retrógrada, patriarcal e machista de que a vida das mulheres estaria à disposição dos homens. O julgamento do STF deu a nós, cidadãos brasileiros, a certeza de que estamos caminhando, mesmo que lentamente, para um futuro em que a mulher não será objetificada.
Ana Carolina Martins Monteiro Pinto é estagiária no Diamantino Advogados Associados.
Revista Consultor Jurídico, 31 de março de 2021, 20h34