A MP do agronegócio e recuperação judicial

A MP do agronegócio e recuperação judicial

Dois fatos distintos merecem uma análise conjunta: o primeiro é a recente decisão da 4ª turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, no julgamento do Recurso Especial 1800032, definiu que as dívidas do produtor rural registrado como empresário se submetem à recuperação judicial. Inédito, referido acórdão garante o direito à reorganização de suas dívidas perante os credores em tempo de vacas magras. O sistema financeiro perdeu.

O segundo fato é que recentemente foi noticiada pelo governo a edição da Medida Provisória 897/19, a chamada MP do Agro, como algo positivo para o produtor.

A medida procura criar fontes alternativas de crédito para o setor que vem, a cada dia, recebendo menos apoio do Estado. Números divulgados no artigo “ O caso das recuperações judiciais no agronegócio”, veiculado pelo Valor em 29 de outubro, demonstram que o juro livre, aquele não controlado pelo governo, dobrou de importância. Até 2018, ele respondia por 20% do crédito na safra, passando para 40% em de 2019. O índice deverá continuar crescendo em 2020.

Dessa forma, em tese, a MP do Agro seria o remédio para essa questão. Dentre inúmeras figuras lá inseridas, como o fundo de aval solidário e a cédula imobiliária rural, nos chama atenção a criação do patrimônio de afetação, previsto entre os artigos 6º e 13º. A medida permite ao proprietário de imóvel rural desmembrar sua propriedade para dar como garantia em operações de crédito. Se continuar assim, nesse caso o sistema financeiro ganhará.

A figura não é nova no Direito brasileiro. Surgiu como forma de combater a inadimplência das incorporadoras nos anos 2000. Todos se lembram da Encol, grande empresa que foi à falência deixando inúmeros compradores à deriva. A figura do patrimônio de afetação era garantia do hipossuficiente na relação econômica.

Nas incorporações imobiliárias, a lei que trata do tema é a 4.591/64, com nova redação da Lei 10.931/2004. O patrimônio de afetação responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva, garantindo que as receitas sejam rigorosamente aplicadas na realização do respectivo empreendimento, impedindo o desvio de recursos. Deve ser registrado a fim de ter publicidade e ainda ter contabilidade separada, lembrando que o patrimônio de afetação se extingue quando atingida a finalidade.

Entretanto, a grande vantagem desse tipo de garantia está no artigo 31-F da Lei 4.591, que determina que “os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação”.

Ou seja, o patrimônio de afetação está imune ao instituto da recuperação judicial.

Com isso, nenhuma outra garantia, salvo a Cédula Imobiliária Rural (CIR) atrelada ao imóvel, poderá ser constituída sobre o patrimônio de afetação e, assim como nas incorporações, não sofrerá os efeitos da falência, insolvência civil ou recuperação judicial – salvo se referente às obrigações trabalhistas, previdenciárias e fiscais.

Aprovada a regra como proposta, será garantia dos bancos contra os produtores rurais.

Emitida a CIR, em caso de inadimplemento do produtor, o credor poderá exercer de imediato a transferência do patrimônio afetado para pagamento da dívida, uma vez que se trata de título executivo extrajudicial, diferenciando-se, entretanto, da alienação fiduciária na medida em que o bem continua na titularidade do devedor.

Do jeito que está, todo financiamento obtido com esse tipo de garantia estará excluído de uma possível recuperação judicial. Tal como na incorporação imobiliária, será quase impossível obter linha de crédito sem esse tipo de garantia. Na prática, ela vai anular a vitória dos produtores no STJ.

Fica a dúvida se a MP veio para criar fontes de custeio alternativas para o setor ou ceifar os direitos frente ao poderoso sistema financeiro. Esqueceram-se de que o beneficiário da recuperação judicial não é o produtor rural. É, na verdade, a continuidade do setor econômico. Nesse caso, o gigante Agronegócio.

É um tema cuja evolução é preciso acompanhar de perto.

Eduardo Diamantino e Lívia Carvalho Bíscaro são, respectivamente, vice-presidente da Academia Brasileira de Direito Tributário (ABDT) e sócio do Diamantino Advogados Associados; coordenadora do departamento de Direito Civil do mesmo escritório.

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

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